Quinta-feira, 16 de Abril de 2009

O Velho Zacarias - Capítulo III - A Escola - Parte 3

 

E, assim, lá fomos os dois a caminho da escola, com uma paragem no boteco para comprar os pirulitos. O meu primeiro dinheiro e o meu primeiro pirulito. Os únicos doces que eu alguma vez tinha comido tinham sido a rapadura que se fazia lá na roça.
Ao chegarmos ao boteco, lá estava o velho sentado na porta, como sempre. Sorrindo para mim e para o João disse:
 
- Bom dia sinhozinhos. Já vão para a escola? Que bom. Tenham muita atenção para aprender, para não virarem burros velhos que nem eu.
 
Eu e o meu irmão sorrimos para o velho, comprámoHs os pirulito e fomos para a escola.
Pelo caminho João tomou a palavra e disse:
 
- Não sei porque é que todos têm medo do velho Zacarias. Dizem mal dele, Xingam ele. Eu acho que ele é muito simpático. Eu não tenho medo dele. A mãe diz que devemos respeitar as pessoas mais velhas e que não devemos dizer mal delas.
 
Olhei para o João e sorri. Concordava plenamente com ele e, além disso, também já tinha nutrido por aquele pobre velho alguma simpatia.
Chegámos à escola e João me mostrou onde era a minha sala.
A professora chegou e me indicou a cadeira onde eu me deveria sentar. Depois me apresentou ao resto da turma contando a todos que eu tinha vindo da roça, que ainda não sabia ler nem escrever e que contava com a ajuda de todos para me ajudarem.
O primeiro dia foi muito bom até à hora da merenda. Todos foram simpáticos comigo e eu estive sempre muito atento à lição, embora tivesse muita dificuldade para compreender o que a professora ensinava. A única matéria que eu tinha alguma facilidade era na matemática. Dominava muito bem os números e até consegui fazer alguns exercícios simples, para o espanto da professora.
Os problemas chegaram com a hora da merenda. Enquanto estava na fila da merenda um dos rapazes da minha turma começou a apontar e a fazer pouco de mim:
 
- Olha o caipirinha burro que veio lá da roça e que com dez anos ainda não sabe ler nem escrever.
 
Tentei ignorar as suas provocações, lembrando-me da indicação da minha mãe para o comportamento. Mas não consegui ignorar por muito tempo. Quanto ele mais provocava mais o sangue das veias me fervia e não me segurei. Saí da fila e me dirigi ao provocador agarrando-o pelo pescoço. Ao verem que eu levava vantagem sobre o opositor vieram mais três para defender o colega que me tinha provocado. Em desvantagem, tentava me defender dos golpes que agora me eram dirigidos.
E, no meio de toda esta confusão, houve alguém que veio em meu socorro. Era o meu irmão João que, perante a minha inferioridade numérica, tomou parte da briga ao meu lado.
Não demorou muito tempo para aparecer um adulto para resfriar os ânimos. E, no final do dia, lá ia nos nossos bolsos um papel a pedir a comparecia da nossa mãe na escola.
No caminho de casa João ia cabisbaixo:
 
- Tamos ferrados. A mãe quando souber vai nos castigar.
 
Mas eu não baixava a cabeça. Tinha brigado sim, mas não admitia que fizessem pouco de mim. Além disso, foi remédio santo. A minha vigorosa explosão tinha servido de aviso e, a partir dali nunca mais ninguém me provocou.
Ao chegarmos a casa entregamos o papel à nossa mãe que, após lê-lo, olhou para nós e disse:
 
- Bonito, muito bonito. Antes de sair de casa foi este o conselho que vos dei? Posso saber o que se passou?
 
Eu, como de costume, fiquei calado. João deu um passo à frente e contou toda a história. No final da história a nossa mãe tomou a palavra e disse:
 
- Bem, Lucas, nós devemos nos defender das provocações e não devemos deixar que os outros nos tratem mal. Mas, não é a brigar que se resolvem os problemas. Violência só trás mais violência. E quanto a você João – Disse virando-se para ele – Agiu bem ao decidir ajudar o seu irmão, mas não devia ser brigando, devia ser a tirá-lo da briga. Como castigo para os brigões acabou-se a televisão e a brincadeira na rua até eu me esquecer do que se passou.
 
A principio não fiquei muito chateado com o castigo pois não estava habituado à televisão e não ia sentir muito a falta dela. Quanto ao não poder brincar na rua também não me incomodou muito. O que eu não sabia era que atrás daquele castigo o tempo que tínhamos para ver televisão e brincar na rua iria ser substituído por mais tarefas escolares. O verdadeiro castigo era estudar o dobro. João ainda tentou argumentar, mas não havia nada a fazer.
A minha nova mãe para além de doce, compreensiva e meiga era também muito exigente na nossa educação, e sabia ser bastante disciplinadora.
No dia seguinte foi à escola como lhe pediram e voltou sem dizer uma única palavra. O que lá se passou nunca ficámos a saber. Mas não deve ter sido nada bom, pois o nosso castigo foi bem prolongado. João bem tentava sair do castigo perguntando-lhe se ela já se tinha esquecido, pelo que a resposta era sempre um redondo “não”.
O que é certo é que o castigo trouxe mais estudo e, com isso, não levei muito tempo até conseguir apanhar os meus colegas de turma.
Todos estavam espantados com a minha capacidade de aprendizagem e a professora dizia mesmo que eu tinha nascido para estudar. Ao fim de três meses já era um dos melhores da turma, e sem nunca proferir uma palavra.
O meu silêncio fazia confusão a todos, até a mim. Por várias vezes tinha tentado falar, mas as palavras simplesmente não saíam.
O que é certo é que quanto mais aprendia mais vontade tinha de aprender coisas novas. Adorava geografia e história e passava horas a sonhar com outros países, outras cidades, outros continentes. Queria saber como é que se vivia lá no passado, como é que esses países e cidades surgiram. Eu tinha facilidade em aprender e a minha curiosidade ajudava a querer aprender ainda mais.
Quanto à fala, ela veio de uma forma inesperada.
Certo dia voltava eu da escola com o João e, ao passarmos em frente ao boteco, tornei a reparar nas enormes cicatrizes que o velho Zacarias tinha à volta dos pulsos e dos tornozelos. Parei em frente ao velho e observei as suas cicatrizes.
João puxou-me pelo braço:
 
- Vamos, se despacha. Estou com fome.
 
Ao entrarmos em casa João foi para o quarto trocar de roupa e eu dirigi-me à cozinha. A minha mãe estava encostada ao fogão a fazer o jantar e eu lhe perguntei:
 
- Mãe, porque é que o velho Zacarias tem cicatrizes tão grandes nos pulsos e nos tornozelos?
 
Minha mãe, que estava a mexer uma das panelas com uma colher de pau, parou ao ouvir aquela voz que nunca tinha escutado. Deixou cair a colher de pau e, se virando, ajoelhou-se a meu pés com os olhos ainda mais brilhantes que de costume e cheios de lágrimas. Com uma mão limpou as lágrimas e me abraçou num abraço bem apertado.
Não sei se toda aquela emoção vinha do facto de eu ter falado, de lhe ter chamado mãe ou de ambas. O que sei é que o abraço foi bem demorado.
Chegando-se para trás tornou a limpar os olhos e, segurando-me pelos ombros respondeu à minha pergunta:
 
- Não sei. O velho Zacarias é um dos primeiros habitantes do bairro mas ninguém sabe nada sobre ele. Vamos fazer o seguinte. Porque não lhe vai perguntar você mesmo?
 
Tornou a me abraçar e me deu um beijo na face. Depois, se levantando disse:
 
- Vá trocar de roupa e vá brincar.
 
Minha mãe era assim, gostava de dar mais importância às coisas pequenas do que às grandes e, apesar de eu saber que o que ela mais queria era que eu voltasse a falar, preferiu tentar não dar importância ao facto e respondeu à minha pergunta.
Quando o meu pai chegou a casa, minha mãe o puxou para o quarto e sem o deixar dizer uma única palavra disse-lhe comovendo-se:
 
- Ele me chamou de mãe! Ele me chamou de mãe!
 
Meu pai acalmou-a e ela lhe contou tudo o que se tinha passado.
A partir daquele dia nunca mais me calei e, às vezes, era bem impertinente, deixando os meus pais atónitos com algumas das minhas perguntas, para a alegria de João que se divertia com tudo isso.
apesar de ainda não ser destaque do Sapo... sinto-me: com vontade de escrever
música: É livro - O meu pé de Laranja-Lima - José Mauro Vasconcelos
publicado por Farroscal II às 14:11
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