Quinta-feira, 26 de Março de 2009

O Velho Zacarias - Capítulo I - Sózinho - Parte 3

               Voltei para o meu canto e senti saudades. Sabia que não voltaria a ser abraçado e beijado pela minha mãe. Senti o meu peito apertar de dor e chorei em silêncio, até que adormeci.

                Durante esse sono sonhei. E como me lembro desse sonho! Sonhei com uma luz branca muito intensa que não me deixava ver bem. No meio dessa luz um vulto de uma mulher. Uma sombra.
                O mais engraçado é que perante aquela imagem não tive medo. Pelo contrário, experimentei uma paz como nunca tornei a sentir em toda a minha vida.
 
- Lucas, não tenha medo. Muitas coisas vão mudar e você vai ter que ter confiança. Lembre-se que nunca estará sozinho e que nada de mal lhe irá acontecer. Aceite tudo com amor, como sua avó lhe ensinou.
 
A luz desapareceu e com ela a mulher.
Quando acordei dona Maria já estava sentada ao lado da minha avó a rezar o terço. A casa estava mais iluminada com velas e candeias espalhadas pelas divisões. Inclusive o quarto da minha mãe.
Levantei-me do meu canto e, devagar, dirigi-me ao quarto onde estava a minha mãe. Entrei devagar, com medo de presenciar todo o horror que tinha visto quando meu pai trouxera a minha mãe. Mas, ao invés disso, minha mãe estava deitada na cama com um bebé nos braços. Serenos, vestidos com roupas limpas, parecia que estavam a dormir.
Estendi o braço para tocar na minha mãe com o intuito de a acordar e, quando estava quase a tocar-lhe, ouvi de novo a voz daquela mulher do sonho:
 
- Aceita tudo com amor, como a tua avó te ensinou.
 
                Baixei o braço, dei mais um passo até ficar encostado à cama. Debrucei-me sobre o corpo da minha mãe e dei-lhe um beijo no rosto, fazendo o mesmo com o meu irmãozinho.
                Quando me virei para sair do quarto vi a minha avó de pé na entrada do quarto a olhar para mim. Disse-lhe:
 
- Vó, uma senhora que apareceu no meu sonho disse-me para aceitar tudo com amor, como você me ensinou.
 
                Minha avó levantou as mãos aos céus e disse:
 
- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo e sua Mãe Maria Santíssima. Deus todo poderoso escutou as minhas preces. Luquinhas, essa senhora só pode ser Nossa Senhora. Guarde o que ele lhe disse só para você e agradeça-lhe todos os dias de sua vida por essa bênção.
 
                Abraçou-me com força, virou-se e saiu do quarto dando graças a Deus. Fui atrás dela de volta para a sala e vi que os vizinhos começavam a chegar. Nenhum vinha de mãos vazias. Um trazia biscoitos, outro chá, outro carne, outro sopa… enfim, todos traziam algo que iam depositando sobre a mesa da sala. A todos minha avó agradecia pedindo que Deus os abençoasse.
                Depressa a casa ficou cheia de mulheres rezando o terço enquanto os homens, quase todos, ficaram do lado de fora, conversando à volta de uma fogueira para se aquecerem durante a noite.
                Vagueei pelo meio de toda aquela gente que se tinha reunido para o velório da minha mãe e do meu irmãozinho, ouvindo as conversas, olhando as expressões das caras das pessoas que olhavam para mim com ar de pena e dó.
                Quando passava ouvia sempre alguém dizer:
 
- Coitada desta criança! Perder a mãe tão cedo e ficar aos cuidados de um pai bêbado. Que vai ser desta criança agora?
 
                Cada vez que ouvia tudo isto sentia uma enorme vontade de chorar, mas logo me lembrava do que a mulher me tinha dito e, repetindo para mim várias vezes, segurava o choro e seguia em frente.
                Mas as minhas forças acabaram quando vi chegar o caixão de minha mãe.
                Um homem que nunca tinha visto antes chegou num pequeno caminhão e, com a ajuda de outro homem, retiraram a caixa de madeira que levaram para dentro de casa.
                Imaginei a minha mãe dentro daquela caixão. Nunca mais vou ouvir a sua voz, sentir os seus abraços e os seus beijos, nunca mais ela vai apanhar cana com o meu pai… comovi-me e comecei a chorar. Não quis que ninguém me visse assim e corri para o mato sentando-me dobrado, agarrado aos joelhos, e chorei debaixo de uma enorme mangueira.
                Não me lembro de ter adormecido, mas, quando acordei sacudido pelo meu pai, já estava na minha cama em casa.
 
- Levanta. Vamos embora. Vou levar-te para casa de seu pai. – Disse ele com um bafo de álcool que me deixou nauseado.
- Mas o meu pai é você – respondi.
- Não quero conversa. As suas coisas já estão arrumadas. Se mexa vai.
 
Em pânico, e sem perceber o que estava a acontecer, vi a minha avó na entrada do quarto.
 
- Vó, o que foi que eu fiz. O que está acontecendo?
 
A minha avó virou-se e saiu apressadamente do quarto a chorar.
O meu pai agarrou-me com força por um dos braços e arrastou-me pela casa agarrando uma trouxa de roupa.
 
- Pai, que foi que eu fiz? Está me machucando. Por favor…
 
                Arrastou-me até ao mesmo caminhão que tinha trazido o caixão da minha mãe e empurrou-me lá para dentro sentando-se ao meu lado.
                O mesmo homem que tinha trazido o caminhão ligou o motor e arrancou.
                Minha avó ficou amparada pelas vizinhas, num pranto que eu conseguia ouvir apesar do forte barulho do motor.
apesar de ainda não ser destaque do Sapo... sinto-me: porreiro
música: João e Maria - Chico Buarque
publicado por Farroscal II às 11:32
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Quarta-feira, 25 de Março de 2009

O Velho Zacarias - Capítulo I - Sózinho - Parte 1

 
Naquela noite tive medo. Pela primeira vez na minha vida estava sozinho, sem ela do meu lado para me proteger.
Lembro-me perfeitamente de tudo como se fosse hoje. A sala estava escura como de costume, apenas com uma candeia de óleo acesa no meio da mesa.
Na única cadeira da sala meu pai debruçava-se com o peito na mesa e, com os braços esticados, segurava na garrafa de cachaça com uma mão e o copo com a outra. Camisa aberta no peito, por fora das calças de fazenda surradas e gastas, de não terem um dia de folga. As botas de couro empoeiradas e com as pontas descosidas.
Era um homem dos seus cinquenta anos, rude, analfabeto, que trabalhava de sol a sol na roça, cuidando das suas canas, que amava mais que a mim. Plantava, colhia e as moía tirando a garapa de onde fazia a rapadura e a cachaça que vendia no mercado de Jequitaí todas as semanas. Orgulhava-se da sua cachaça, que dizia ser a melhor da região, quando estava meio sóbrio, e a melhor do mundo quando estava bêbado, que era quase sempre.
Magro e seco de tanto trabalho e pinga, pele escura e quebrada do sol, olhos fundos e perdidos, de quem não tinha outro objetivo se não viver o dia de amanhã para colher mais canas.
Falava com orgulho do seu filho, fruto de um primeiro casamento e cujo a mulher tinha morrido ao dar à luz um filho que também morreria durante o parto. Falava de como ele seria um grande homem, talvez um advogado, que teria uma família feliz e próspera e se casaria com uma moça digna e não teria que se casar com uma mulher perdida para ter em casa alguém para cozinhar para ele. Eu não entendia porque dizia aquelas coisas, principalmente porque eram ditas à minha mãe.
Não era um homem mau, apesar de algumas surras que me deu, embora também nunca lhe tenha visto um carinho para mim ou para a minha mãe.
Meu irmão, Salomão, tinha partido há dois anos para Uberlândia, para casa de uns parentes que ali viviam. Tinha 15 anos e meu pai mandou-o porque queria que ele estudasse para não ser um analfabeto como ele mesmo era. Meu pai dera-lhe o nome de Salomão por se achar abençoado pela sua família e, como tal, dera o nome com esperança que Deus abençoasse o seu filho com uma inteligência divina, para que não tivesse que viver como ele. Meu pai, ouvi da minha avó, fora um homem de fé até à morte da sua primeira mulher.
No dia da partida do meu irmão, meu pai retirou uma caixa de dentro do seu armário e agarrou um maço de notas que lhe colocou na mão, advertindo-o:
 
- Quando chegares a Uberlândia procura pelo Chico Castanha. È nosso primo e não te vai negar um teto.
 
Nunca tinha visto tanto dinheiro.
Meu irmão partiu na carroça do nosso vizinho até à cidade, onde apanharia um ônibus. Nunca mais o vi ou tive notícias dele.
Minha avó, sentada no banco de correr encostado à parede, segurava o terço e, entre as ave-marias, soluçava e embebia as próprias lágrimas.
Era uma mulher devota, de um coração enorme e sempre me tratara com muito amor e carinho. Ficava com ela em casa enquanto minha mãe e meu pai cuidavam dos afazeres da roça. Falava-me do amor de Nosso Senhor, de como Ele, lá doa alto, olhava e cuidava de nós. Rezávamos o terço todos os dias enquanto ela preparava o almoço. No fim do terço rezávamos a consagração a Nossa Senhora. Minha avó falava que deveríamos aprender com Maria a ser humildes de coração e a aceitar, sem reclamar, a vida que Deus nos tinha dado, pedindo a ela que nos ajudasse a suportar a dureza da vida.
Eu não entendia porquê ela falava em dureza da vida. Eu era feliz. Brincava, corria pelo mato como um animal livre, caçava tatus, enfim, divertia-me no auge da minha infância.
Tratava a minha mãe como se fosse uma filha e repreendia o meu pai sempre que, bêbado, chamava a minha mãe de perdida:
 
- Não tem o direito de a tratar dessa forma. É a mulher que Deus te deu para te tirar da solidão. È uma mulher boa que te ama e que se dedica a você sem nunca reclamar da vida que Deus lhe deu. Deus ainda te vai castigar pela sua ingratidão.
 
E assim foi. No oitavo mês da sua gravidez, minha mãe, a quem eu nunca vira tirar um dia para descansar, apesar da enorme barriga que carregava, caiu curvada às dores enquanto cortava as canas na companhia de meu pai.
Meu pai entrou em casa quase arrombando a porta, trazendo minha mãe no colo. Eu estava com a minha avó na cozinha a preparar o almoço e a rezar o terço, como era hábito. Minha avó largou tudo e correu para junto de meu pai para o ajudar a deitar minha mãe na cama.
De dentro do quarto veio o grito de minha avó:
 
- Lucas, depressa, vai chamar a vizinha Maria e diz-lhe que chegou a hora.

 

publicado por Farroscal II às 12:50
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